segunda-feira, 13 de abril de 2009

TRIBUTO À MIMI E À JOVENTINA


Há quem vá argumentar e de todo não lhe tiro a razão, que a história contada aqui guarda uma certa herança dos antigos tempos da escravidão, onde as relações entre o "senhor" e seus servos era pautada por uma total submissão e o tratamento humanitário, quando havia, era correspondido por fidelidade e adoração canina.

Pois eu tive o privilégio de conviver com duas dessas antigas e adoráveis figuras em minha vida : Mimi, era uma mulata de olhos verdes que havia auxiliado a minha avó, a partir do nascimento da minha mãe, e foi ficando na família até quando a minha mãe se casou e com ela a levou . A Joventina era uma negra retinta que se ocupava da cozinha da casa. Quando moravamos em Salvador, fazia parte do contingente de empregados que trabalhavam para a minha família .

Ao nos mudarmos para o Rio, quando eu tinha quatro ou cinco anos, feita uma rigorosa seleção, vieram conosco a Mimi, já então promovida à condição de "agregada", a bondosa Joventina, para cuidar da cozinha, e a Maria, então mocinha, uma mulata clara bem ajeitada, para cuidar da arrumação.

A Maria logo arranjou um admirador que, apaixonado, a levou com ele para um país da então União Soviética. Restaram a Mimi e a Joventina, ambas dedicadíssimas à minha mãe. A Mimi, para mim, era uma verdadeira avó , sempre ao meu lado, me defendendo, escondendo minhas peraltices e me cobrindo de presentes. Como ela não era empregada, ocupava um quarto no corpo da casa e, em vez de salário, minha mãe dava "presentes" em dinheiro a ela, além de suprir todas as suas necessidades. A Joventina recebia salário e foi terminantemente proibida de gastar o seu dinheiro com presentes para minha mãe. Mas não adiantava : ela recebia a grana, saía e voltava feliz, com um monte de bugigangas para lhe presentear . E indagava : "para que eu quero dinheiro ? " . Havia, também, um faxineiro homem, Sr. Válter, com quem tínhamos um relacionamento cordial, mas com um distanciamento bem mais profissional.

E a vida seguia gostosamente o seu rumo até que, aos meus quinze anos, a minha mãe faleceu, vítima de um câncer que, entre ser diagnosticado e matá-la, não durou mais de um mês.

Como não poderia deixar de ser, o meu pai avisou à Mimi e a Joventina que contava com elas para manter a casa em ordem e a família tendo uma estrutura de lar, em que pese a falta da dona da casa. E que pessoas extraordinárias elas foram, atuando em um imenso processo de doação e carinho a mim, ao meu irmão e ao meu pai.

Eu era ligadíssimo à minha mãe e perdê-la me fez descobrir ainda cedo o lado amargo da vida. Não foram poucas as vezes em que eu me deitava num sofá, a cabeça no colo da Mimi e chorava, chorava todas as lágrimas de que dispunha, enquanto a " minha velha" ,em silêncio, acariciava os meus cabelos. Quando chegou à época de ir a festas ou de ficar batendo papo com os amigos, não tinha jeito, mesmo naqueles tempos de "violência zero", onde as preocupações deviam ser muito menores que hoje, ao chegar em casa, fosse a hora que fosse, lá estava a Mimi, sentada numa poltrona, dedilhando um terço, me esperando aflita.

A Joventina se esforçava ao máximo para nos servir como nos tempos da minha mãe, mesmo que já padecendo de uma avassaladora diabetes. Lembro que ela, em seus últimos dias, teve que ser hospitalizada e perdeu uma das pernas. Todos os dias íamos visitá-la e, na véspera de morrer, com a voz quase sumida, ela perguntou ao meu pai se ele iria "guardar o lugar dela".

A Mimi, uma velhinha de hábitos diferentes, eis que ficava assistindo a televisão até que se encerrasse a programação, gostava de dormir até às onze horas, ou meio dia, quando lhe levavam um mingau para ser tomado ainda no quarto. Um dia, a empregada foi levar o tal mingau e ela havia morrido dormindo, aos noventa e tantos anos. O meu pai, depois de haver providenciado todo o enterro, se lembrou que ela lhe havia feito um pedido, já há bastante tempo : queria ser sepultada num caixão branco. E foi ...

Mas, além da justíssima homenagem que presto a ambas, registro que, salvo as exceções que confirmam a regra, observo o quanto se tornaram frias e impessoais, quando não tensas, as relações entre os empregados domésticos e seus patrões e agradeço a Deus ter conhecido uma outra época, com toda a certeza, com muito mais calor humano. Eu, de minha parte, com a formação que tive, ainda insisto em dar muita trela, brincar, enfim, tratar como amigos os que comigo trabalham, pouco importando se essa "intimidade" acabe me acarretando abusos e aborrecimentos.