quinta-feira, 18 de junho de 2009

"A VIDA COMO ELA É"

Já disse aqui da minha imensa admiração pelo grande escritor, jornalista e teatrólogo Nelson Rodrigues. Nelson era desses raros seres humanos que transpiram genialidade por todos os poros e a cada momento de sua vida .

Como se não bastasse o talento desse meu ícone, vejo nele, na sua picardia, na agucidade cáustica da sua expressão, algo que muito me faz lembrar do meu pai e, quem conheceu a ambos, concorda inteiramente comigo. O " Professor Jayme Abreu ", como era conhecido em seu meio, costumava dizer : " Eu sou tolerante com a burrice, mas com a burrice humilde , não admito o burro vaidoso ! " . E, pobre coitado desse tipo, quando caia nas mãos dele. Era, com muita calma, voz baixa e pausada, reduzido a "pó de traque" e, pior, muitas vezes, acabava na dúvida, sem ter certeza se havia sido execrado ou enaltecido, tamanha a overdose de ironias.

Voltando ao Nelson Rodrigues, como ele funcionava como uma espécie de Raio X literário da sociedade, expondo as suas vísceras, muitos o queriam queimar numa fogueira, como nos tempos da Inquisição. Sendo assim, achei por bem homenagear o grande mestre, salpicando aqui um ou outro fato, digamos, incomuns, que desfilaram ao longo da minha vida e, creio eu, poderiam perfeitamente servir de cenário a uma das narrativas de A Vida Como Ela É .

Quem morre é quem perde a vida - Acordo num sábado e me dirijo ao apartamento de um casal de senhores, parentes próximos meus. Encontrei um clima de luto e pranto. Haviam acabado de receber a notícia do súbito falecimento do pai daquele senhor . O velório e o sepultamento seriam na Bahia onde residia o finado. Nós, estávamos no Rio de Janeiro e, as viagens aéreas, naquele tempo, não eram como hoje, quando se vai para o aeroporto e acaba por conseguir um lugar. Não, as viagens eram programadas com muita antecedência, os bilhetes emitidos e guardados com todo o cuidado até a hora do embarque. Bem, trocando em miúdos, não havia a menor possibilidade de se embarcar o filho inconsolável, a tempo de poder prantear, de corpo presente, o seu genitor. As companhias aéreas dispunham de agências em diversos pontos da cidade e fomos a muitas delas, infrutíferamente. Eu ali, dirigindo o carro e solidário com a situação dramática. Eis que, no vai e vem pela Zona Sul do Rio, passamos pela porta do Jockey. Ao ver o hipódromo, o enlutado me diz : " Pois é, veja como a vida nos prega surpresas. Eu acordei feliz e cheguei, com a maior fé, a marcar o joguinho que ia fazer nas corridas de hoje. De repente, recebo um telefonema trazendo a infausta notícia ". Isto me foi dito entre um e outro soluço sentido, lenço enxugando lágrimas. Ouvi e fui em frente, em busca de uma outra loja de empresa aérea. Nada feito. Impossível viajar para Salvador naquele dia, ou mesmo no dia seguinte logo cedinho. Estamos voltando para casa e olha o Jockey de novo no caminho. Foi quando ouvi uma frase que me deixou perplexo : " Meu filho, já que estamos por aqui, você se incomodaria de dar uma paradinha rápida para eu fazer o meu jogo ? " . Segundos depois, lá estava aquela austera figura, postada diante de um guichê de apostas, a dizer para o funcionário do Jockey Club, no maior entusiasmo : " Coloca aí, primeiro páreo número tal ... ! ". Aposta feita e bem guardada na carteira, voltamos para o carro e seguimos de volta para casa, e eu, ainda incrédulo, a ouvir as lamúrias de quem havia acabado de conhecer a orfandade.

Pau que nasce torto, não tem jeito, morre torto - Tenho um amigo que sempre foi conhecido por todos, menos pela sua santa mulher, como um dos maiores "galinhas" da paróquia de São Paulo. O camarada aprontava todas e a sua mulher, pessoa boníssima, ou não percebia, ou fingia não perceber, por considerar, à moda dos nossos pais, que o casamento era algo que só a morte podia desfazer e, sendo assim, a melhor política era se fingir de cega. Esse meu amigo não conversava : férias de verão, família no Guarujá . Férias de inverno : família em Campos de Jordão . Enquanto isso, ele engrossava o cordão dos "solteiros de ocasião" , arranjando namoros, aventuras, o que pintasse no pedaço. Um belo dia encontro o cara e pergunto : "E aí, como andam as estrepolias ? " . Ele me olhou com um ar dos mais contritos que já vi e respondeu : " Não, esse tempo acabou. Eu agora sou um discípulo de Jesus, não falto a uma missa, comungo todos os domingos ... " . "Puxa, disse eu, que beleza ! E, a que devemos essa metamorfose ? "

" Você não queira saber ! Minha família em Campos do Jordão, lá vinha eu de madrugada, no carrinho esporte, levando uma "amiga" para casa. Nisso, me vem um maluco por uma transversal, correndo muito, e bate em cheio na lateral do meu carro que saiu capotando. Quando dei por mim, estava com as quatro rodas para cima, meio tonto. Olhei para o lado e, cadê a minha amiga ? Tinha sumido ! Foi preciso que me ajudassem a sair do carro e, quando me vi de pé, olhei para a calçada e as minhas pernas bambearam. A moça, que não devia estar usando cinto de segurança, estava ali, esticada, sem se mexer. Meu Deus, ela está morta e eu frito ! Foi quando fiz a promessa : escapando desta, eu juro, Senhor, prometo ser outro homem, me ajude ! E, fui atendido : nenhuma fratura, nenhuma morte, apenas leves escoriações . Aquilo foi um aviso, talvez o último ! "

Tempos depois, encontro novamente a figura : " E aí, como está o novo homem ? " E ele me respondeu, " Olha, quer saber ? Eu nasci para a esbórnia e para a esbórnia voltei . " Pois não é que, numa noite dessas, encontro esse meu amigo e a sua mulher, num restaurante, como dois pombinhos, de mãos dadas, arrulhando felicidade ? Pois é , a vida é bela ! "

Hoje em dia, até velório está saindo de moda . Sob o pretexto da falta de segurança, deixam o morto trancado a noite inteira, numa sala de capela mortuária, curtindo a sua derradeira e amarga solidão. Mas já houve o tempo em que as famílias " prestavam sentinela " ( essa expressão fui buscar lá bem no fundão do meu baú ) aos seus mortos, durante a noite inteira. E o defunto aguardava em casa mesmo, a hora de ser transportado para a sua última morada. Mas o sono, esse nunca deixou de existir. Em caso de mortes menos concorridas, quando dava lá prá duas, três horas da manhã, era difícil controlar a vontade de dar uma cochilada. Pois bem, um amigo havia perdido uma tia avó, senhora solteirona e casta como a época exigia e, como de seu dever, se apresentou para desempenhar a função de sentinela. Esse amigo, à época um garotão, cultivava um desejo sexual quase incontrolável, hoje mais conhecido por tesão, por uma prima, moça, diga-se de passagem, de apreciáveis atributos físicos. Até então, apenas alguns rápidos e furtivos amassos haviam existido entre ambos e sómente contribuíram para o açodamento do desejo que os atraía. Eis que, naquela noite de quarto minguante, os primos se sentaram lado a lado, em cadeiras postas para servir aos que guardavam a extinta. A proximidade, a quentura das pernas que se encostavam mais e mais, foi criando uma situação cada vez mais conflituosa com a atmosfera do ambiente. Folhas tantas, só "os de casa" não se despediram, para voltarem na manhã seguinte. E, os três ou quatro ali residentes, quedaram vencidos pelo sono. Mais acordados e acesos que nunca, só o nosso casalzinho. E beija daqui, pega dali, aperta não sei onde, a situação acabou fugindo de controle e, sob a luz dos círios que queimavam para iluminar o caminho daquela bondosa alma, acabou por ser exercitado o amor, representação maior da vida. Vencida a madrugada, era de se notar o surgimento de um bonito sorriso compondo a expressão facial da morta . Inexplicável para muitos, o sorriso foi compreendido pelos dois jovens como uma manifestação expressa de cumplicidade com o sucedido.

Bem, histórias de vida como essas, as tenho aos potes. Hoje, ficarei por aqui, para poupar o precioso tempo dos que me privilegiam com a leitura do blog.