sexta-feira, 5 de junho de 2009

NOS TEMPOS DOS MEUS AVÓS

Meu avô materno foi um homem, no mínimo, muito bem situado na vida. A sua mulher, minha avó, teve pais ricos que deixaram para cada um dos filhos uma considerável quantidade de imóveis e jóias de alto valor ( naqueles tempos, os investimentos eram feitos, em geral, em imóveis e jóias ) . Comerciante atacadista de tecidos, o meu avô Gustavo adquiria grandes quantidades de tecidos e trabalhava, pelo nordeste, com uma rede de comerciantes seus clientes que recebiam em consignação a mercadoria, para um posterior acerto de contas.

Segundo nos conta a história familiar, a crise de 1929 atingiu em cheio esse meu avô, pois se ele era credor numa ponta, era devedor na outra. Como o seu comércio foi alvo de uma inadimplência generalizada, ele não teve dúvida em dispor do patrimônio próprio e daquele herdado pela sua mulher, para honrar os compromissos. Morreu pobre, sem nada mesmo. Registro, porém, que o insucesso comercial do meu avô Gustavo jamais repercutiu em revolta ou incompreensão de sua mulher e filhos.

Para complicar a situação, profundamente abatido e desgostoso com a sua situação comercial, contraiu tuberculose e teve um fim de vida triste, se vendo obrigado a morar numa casa cedida por parentes e a receber auxílio financeiro de familiares que resistiram bem à crise de então. Muitos o criticavam, dizendo que ele deveria ter usado dos subterfúgios já então existentes, para salvar pelo menos os bens que a minha avó havia recebido por herança. Para ele, no entanto, nada de material poderia ser mais importante que a sua honra. E, se alguns familiares teciam esse tipo de consideração, o mesmo não acontecia com a sua mulher e filhos que só se referiam a ele com respeito, carinho, devoção e saudade.

Do lado paterno, a história foi diferente. O meu avô José não nasceu em berço de ouro. Seus pais, portugueses, como tantos outros então, vieram para o Brasil para trabalhar duro e lutar com dificuldades pela sobrevivência. Havendo ficado órfão de pai ainda menino, com 15 anos já labutava num balcão de comércio para ajudar a mãe. Ele era rapaz, quando recebeu um convite para trabalhar na Companhia de Seguros Aliança da Bahia. Uma curiosidade, quase inacreditável, foi ter ele trabalhado na "Aliança", como gostava de dizer, durante setenta e três anos ! ( é bem verdade que, nos últimos anos, já de forma quase simbólica, sendo poupado de atividades mais complexas ). Para o trabalho ele se dirigia todos os dias, detestando férias ( raríssimas e quase impostas a ele com no mínimo dez anos de intervalo entre uma e outra ) e feriados, até que uma gripe se transformou em pneumonia e o seu velho coração não resistiu aos noventa e três anos de contínuos " bons serviços".

Pois bem, nos tempos do meu avô Abreu, era comum haver empregados fiéis e dedicados e patrões reconhecidos. Meu avô foi galgando degrau por degrau os diversos escalões da empresa e durante muitos anos esteve compondo o seu quadro diretivo.

Rico não ficou, mas fruto de um bom salário, prêmios e participação em resultados, alcançou um padrão de vida muito confortável e uma situação patrimonial que lhe dava toda a tranquilidade.

Volta e meio gosto de reler um livro de memórias escrito pelo meu tio, que foi o irmão caçula do meu pai, o hoje falecido Desembargador José Abreu Filho . Ali há muitas e deliciosas histórias que bem retratam o perfil da minha família paterna e a cidade de Salvador em boa parte do século XX .

Para dar uma idéia dos padrões morais do meu avô Abreu, vou reproduzir aqui um dos muitos episódios contados no livro : possuia ele um prédio de dois andares que alugava, numa zona então considerada como sendo de comércio nobre da cidade. Um belo dia, estando este imóvel desocupado, meu avô resolveu vendê-lo para fazer um outro investimento. Logo surgiu um comprador que aceitou o preço pedido , apalavrando o fechamento do negócio. Enquanto o meu avô providenciava a documentação para lavrar a escritura, surgiu um outro interessado, proprietário de um prédio que ficava na rua de trás . Ele não sabia que o imóvel que lhe fazia divisa nos fundos estava à venda e ficou inconformado ao ver que perderia aquela oportunidade única de fazer o seu estabelecimento passar a ter frente para duas ruas. Ao saber que o negócio estava apenas "apalavrado", ele fez uma proposta de pagar quase o dobro da quantia que o imóvel seria vendido e o meu avô, se sentindo ofendido, praticamente convidou o cidadão a se retirar da sua sala, dizendo que se o imóvel estava à venda, a palavra dele não .

Fui criado ouvindo conversas sobre honra, lealdade, correção e, quero crer, essas práticas eram mais ou menos correntes nos velhos tempos dos meus avós. De maneira nenhuma se tratavam de conceitos exclusivos dos que me antecederam geneticamente.

Viajo para tempos mais recentes e lembro de um depoimento do Chico Buarque sobre Vinicius de Moraes, num precioso documentário sobre o nosso querido e inesquecível poetinha. Disse Chico mais ou menos assim : "Às vezes fico pensando que Vinicius, do jeito que era, morreu no tempo certo ( 1980 ). Não sei se ele, com a sua generosidade, com o seu despreendimento, com a sua bondade e caráter, se adaptaria a viver nos dias atuais " . E eu entendo perfeitamente o sentido das palavras do Chico Buarque, que me levam a um verso do próprio, em canção dos tempos do regime militar : "só sei dizer que a coisa aqui está preta... ".