quarta-feira, 11 de fevereiro de 2009

A VELHA CASA DA MOURARIA


Morando no Rio de Janeiro, na célebre Rua Toneleros, aquela mesma onde se deu o atentado a Carlos Lacerda que resultou no suicídio de Vargas, todos os meses de fevereiro partíamos de férias familiares para Salvador, onde ficávamos hospedados na "Casa Grande" do meu avô paterno. Lá havia um clima que daria um ótimo argumento ao Gabriel Garcia Marques. Para mim, então na fase de sete/ oito/ nove anos, as férias ali eram um paraíso. Moravam com o meu avô, já então viúvo, duas filhas solteiras, uma outra que havia ficado viúva com quatro e depois três filhos, o meu tio Fernando, igualmente viúvo e com duas filhas, depois uma ( perdi duas primas, crianças, que faleceram vítimas de afogamento num trágico pic-nic familiar na praia do Rio Vermelho), mais uma irmã do meu avô,a bondosa tia Honorina, que havia ficado cega e passava o seu tempo rezando terços e mais terços. Além dos aqui lembrados, havia sempre alguns outros agregados que se acomodavam pelos nove quartos da casa, contando apenas os que ficavam no andar superior.

A casa tinha salas e mais salas, umas levando a outras, com direito à capela que permanecia fechada, exceto em dias especiais, assim como um salão reservado às grandes ocasiões, equipado com diversos jogos de sofás e cadeiras e um finíssimo piano meia-cauda. Este cômodo de imensas janelas dava para a calçada. Do quintal, um mini-bosque, nem é bom falar. Meu avô era o que se podia chamar de pioneiro do ecologismo, amava as plantas e as árvores e delas cuidava com denodado carinho nas suas horas de folga, subindo em escadas até perto dos noventa anos, para podar um pouco aqui, tirar um galho seco ali, amarrar alguma muda que lhe tivesse sido presenteada, etc. Não faltava também um sortido galinheiro, numa espécie de anexo lateral ao terreno, onde o acesso da "netaiada" era expressamente vetado.

Do outro lado da rua, a pequena mas muito aconchegante igreja de Santo Antônio da Mouraria, de quem o meu avô foi grande devoto o que , segundo nos conta a história familiar, determinou a sua decisão em comprar a tal casa, não sem grande sacrifício financeiro. Inesquecível, sem dúvida, era que do meu quarto, espichando o pescoço na janela, dava para espiar uma sala ao lado da igreja, onde eram realizados velórios. Ficávamos ali, as crianças, de longe espiando, fascinados e, na hora de dormir, vinha um imenso pavor. Naquele tempo, havia inofensivos fantasmas povoando as mentes infantis. Hoje, perigosos assaltantes.

Mas o sisudo e sério avô, homem de quem jamais ouvi uma gargalhada, era carinhoso e afetivo com os netos, deles aceitando paciente as correrias, os gritos e as brincadeiras. Todavia , algumas coisas eram expressamente proibidas naquela casa. Um exemplo ? baralhos . Nada de jogo, nem mesmo "burro deitado", "mico preto" ou ingenuidades da espécie.

No entanto, daquela época, o que mais me marcou, foi a forma como o meu avô era reverenciado por todos os seus nove filhos, genros, noras e netos. O meu pai, médico, um reconhecido intelectual, frequentador diário da roda liderada pelo grande educador Anísio Teixeira, já passado dos quarenta anos, ao ver o "velho Abreu", se perfilava circunspecto, estendia a mão e dizia : "a sua benção meu pai" e, com todo o respeito, beijava a mão paterna . "Deus lhe abençoe, meu filho" e estava cumprida a inquebrantável liturgia. E esse era o comportamento-padrão naquela família. Para mim, algo que gravei com grande carinho e de que me lembro quando assisto ao tratamento pouco respeitoso com que, nos tempos atuais, a maioria dos filhos costuma brindar os seus pais idosos.